sexta-feira, 1 de março de 2013

Incompetência necessária

            A incompetência sempre é vista como algo negativo. Acontece que num contexto complexo como aquele em que acontecem as atividades humanas, alguns valores acabam se invertendo. Mesmo os piores defeitos podem se transformar em atitudes necessárias à manutenção de uma ordem qualquer e ao funcionamento de certas engrenagens.
            O excesso de produtividade de um setor do serviço público, por exemplo, pode atrair a ira de vários outros setores e atrapalhar o alcance dos resultados. Mesmo em empresas e entidades de alta eficiência certas funções não podem ser exercidas por pessoas muito capacitadas. Outras instituições de tão pequenas e incipientes que são, ou pela clientela que atendem, devem agradecer à existência de uma massa de profissionais pouco capacitados que possam ser submetidos a péssimas condições de trabalho e salários parcos. Outros casos são as profissões que só existem em função de haver uma clientela crédula que acredite na possibilidade de que tal serviço lhes seja realmente necessário. Nestes casos, a crença no profissional pode superar o seu potencial de ser realmente útil e provocar grandes desequilíbrios.
             A vida nas organizações é como uma dança. Quando um casal dança, ambos devem dançar o mesmo tipo de música. Se um tentar dançar samba e outro uma valsa, provavelmente não vai dar muito certo.
             A mesma coisa acontece nas organizações. Se um setor trabalha muito rápido, alguma coisa está errada, ou pelo menos acabará não dando certo. Produtos ficarão inacabados. Alguns clientes não ficarão satisfeitos e por aí vai. Mesmo no serviço público, o volume de fiscalizações, por exemplo, deve ser medido pelo impacto negativo que poderá ter sobre a opinião pública. São os famosos gargalos institucionais.
             Um dos grandes exemplos neste caso é o serviço público. Milhares de anos de apadrinhamento e má gestão não vão ter solução em pouco tempo. 20, 30 anos ou um pouco mais de gestão patrimonial não vão resolver problemas tão antigos. Algumas instituições estão permeadas de tal forma pela incompetência e mal caratismo que as mudanças levarão anos e anos a té serem sentidas. Neste ambiente, qualquer mudança de posicionamento em busca da eficiência tem que ser muito bem trabalhada para ser aceita. Ou todos ganham alguma coisa ou o preço a pagar é muito caro devido à resistência natural.
            É normal que uma pessoa com excesso de capacitação não seja a ideal para determinados cargos. Muitas das vezes, é necessário que o chefe de sessão, ou os cargos intermediários seja preenchidos por pessoas que não percam tempo com questionamentos desnecessários.
            Este não é o perfil dos profissionais com maiores qualificações. Quem estuda mais, quem lê mais, certamente vai questionar a utilidade de um determinado procedimento. Este é o profissional que não se contentará em executar sempre os mesmos procedimentos, com os mesmos defeitos e limitações de sempre.
Em uma estrutura institucional arcaica ou viciada não há espaço para grandes questionadores liderarem.
            Caso tais tipos sejam admitidos, mesmo sem a aquiescência da administração central, devem ser reprimidos, silenciados ou ignorados. Isso acontece muito em concursos públicos que são uma forma de admissão em que o gestor não tem como escolher o caráter, a índole do funcionário. Logo, pode acontecer de serem admitidos servidores que não se atém às exigências limitadoras da entidade.
             Interessante é que algumas áreas de formação até facilitam a alienação profissional. Sobretudo em áreas muito técnicas, o aluno da faculdade não tem tempo, e nem mesmo uma grade curricular, que lhe garanta algum aprofundamento em questões filosóficas. Ciência Política, Economia Política, Filosofia e Sociologia não são matérias de interesse dessas áreas. E são justamente essas questões que dariam maior bagagem intelectual ao profissional para questionar a organização. Trata-se de excelentes técnicos mas de péssimos questionadores. Sua capacidade de reflexão está limitada aos princípios e à doutrina de sua área. E raramente será capaz de filosofar, de questionar ou se posicionar em assuntos que exijam maior reflexão.
              Infelizmente nem todas as instituições têm o mesmo nível de organização. Outras, pelo próprio público que atendem e pela forma que trabalham jamais atrairão os melhores profissionais. Inclusive por não oferecerem salários que compensem a obtenção de maior capacitação. Com raras mas honrosas exceções, alguns negócios por exemplo, como bares mais populares, motéis e ambulatórios médicos, principalmente públicos, sempre serão lugares pouco procurados por profissionais mais capacitados. Para que haja uma massa de trabalhadores disposta a trabalhar em tais lugares e pelos salários que são pagos é necessário que não haja uma boa formação profissional.
              Em alguns setores do Serviço público, a exemplo de pequenas prefeituras e instituições de ensino, precisam necessariamente de que os pretensos candidatos às vagas disponíveis em concursos tenham capacidade profissional e intelectual limitada. O pagamento de valores inferiores a 2 salários mínimos, por exemplo, a psicólogos, enfermeiros e até dentistas só se justifica por haver alguns profissionais no mercado que não seriam capazes de pleitear salários melhores que são pagos por outros empregadores.
             É aos profissionais que não reuniram capacidade laboral e formação geral para partirem para outras iniciativas que vários municípios têm que agradecer por conseguirem completar mal e mal os seus quadros. É eles que vão garantir o funcionamento, mesmo que precário, e o cumprimento da legislação que obriga à sua contratação.
             Faça-se aqui um reforço na questão das exceções. É muito comum que, mesmo nas mais distantes cidades do interior do estado alguns profissionais de excelente formação desejem trabalhar perto de seus lares de onde se ausentaram cedo em busca do estudo universitário que não encontraram por lá. Outro grupo importante, mas infelizmente muito reduzido é o de professores, médicos e enfermeiros, por exemplo cujos conceitos de vocação e por puro altruísmo entre outras qualidades individuais tomam a decisão de se deslocarem, mesmo para longe de suas cidades de origem, para prestarem serviços em regiões onde seus serviços possam ser mais úteis. Nesses casos as condições financeiras, logísticas e mesmo as políticas relacionadas ao trabalho têm menor importância que a realização pessoal.
             Neste ponto, o questionamento sobre a competência alcança mesmo a escola pública e alguns cursos superiores. A questão pode ser, por exemplo, caso houvesse mesmo um ensino público de excelente qualidade e que conseguisse excelentes resultados para um número muito maior de pessoas, isso não seria ruim para as classes médias e o empresariado. A competição pelos melhores cargos tenderia a ser maior e a dificultar a própria vida dos filhos e parentes dos representantes dessas classes. Esses poucos profissionais com excelente formação provavelmente não teriam a mesma disposição da massa com problemas de letramento para ocuparem as péssimas funções disponíveis em várias áreas do mercado.
              Outro caso menos grave mas digno de nota são as profissões que dependem da crença dos pretensos clientes para existirem. Antes de avançar no assunto é necessário se registrar que a incompetência é uma via de mão dupla. Pode estar localizada em quem executa um determinado serviço. Mas também, e na maioria das vezes, inclusive para os casos acima, depende muito de uma clientela inocente e com pouco senso crítico para que possa continuar a existir da forma que existe.
              São os casos das profissões que dependem de gente crédula para existirem. Sem generalizar, mas os instrutores individuais de educação física – “personal trainners”, os fisioterapeutas, psicólogos, psicoterapeutas e terapias alternativas em geral dependem de uma massa de pessoas que acreditem nas formas como os serviços são prestados de maneira geral. Não se trata de uma depreciação dessas carreiras. Mesmo a medicina em certos casos, necessita de que o cliente se disponha a atribuir tal e qual autoridade ao profissional que vai lhe dar atendimento.
            O problema e onde há realmente incompetência é quando falha o profissionalismo e entra a fé cega. Grande exemplo são a maioria dos religiosos que não tem qualquer formação humanitária para que possam realmente ajudar a seus clientes. Mesmo assim, devido à aura de sagrado que cerca suas profissões acabam erigidos à autoridade para a qual não estão preparados. Esse desequilíbrio entre mérito e autoridade acaba por resultar nas constantes notícias que aparecem na media sobre abusos cometidos por religiosos.
             Há casos e casos. Mas em geral, os profissionais das áreas citadas acima são vistos como autoridades em suas áreas. O problema é que, grande parte das vezes, seus conhecimentos são parcos e não atingem um nível que permita que profissional mantenha o devido controle da autoridade que é atribuída a ele. Pergunte-se por exemplo à maioria dos instrutores de academia quando é que leram sobre esse e aquele assunto e raramente se dará a grande surpresa de ver que o sujeito leu mesmo.
             Outra situação perversa é o caso em que, por gerações e gerações os salários tem sido ruins e a carga de trabalho muito alta ou níveis de riscos muito elevados. Caso dos contadores ou dos policiais, respectivamente. É lógico que não serão as pessoas mais capacitadas que procurarão aquele trabalho. E as que procurarem, mas se sentirem mais capazes, inevitavelmente procurarão debandar dessas profissões. Forma-se dessa forma um círculo vicioso que poucas vezes é quebrado.
             Exceção deve ser feita aqui para os líderes dessas classes que, apesar de raras vezes saírem de sua área profissional acabam por se darem bem financeiramente com as promoções que recebem. Tais mudanças nos postos das carreiras lhes garantem menor carga de trabalho ou menor nível de risco nas atividades desenvolvidas.
             As causas e as consequências da incompetência são muitas. As exceções têm que ser repetidamente divulgadas e reconhecidas. Instituições pobres, empresas que lidam com serviços e clientelas difíceis não têm como pagar bons salários e acabam admitindo qualquer um. Anos e anos de baixos salários pagos e condições ruins de trabalho, vividos por uma classe fazem com que gente mais preparada acabe procurando outras opções profissionais e condenando determinadas áreas a admitir pessoal sem boa formação. Em certas profissões a utilidade e a eficácia do trabalho desenvolvido podem ser superados pelo carisma do profissional ou mesmo do clima que cerca sua atividade e fazem com que o foco seja desviado dos verdadeiros objetivos.
             Ou seja, esse mundo não funciona sem gente ruim de serviço. Os fast foods, os botecões sujos, e todos os lugares menos atrativos sempre sofrerão com as dificuldades em contratar gente bem formada e bem treinada. Ao invés de um xingamento, essa conclusão deve servir de aviso aos responsáveis por esses empregos. Treinem bem seus funcionários, estimulem-nos, escultem seus clientes mesmo quando se tratarem de órgãos públicos. Leiam e informem-se para não ficarem para trás no trem da novidade, da especialização e da boa capacitação.